RECUSARÁS ESTE AMOR?

Uma das situações mais próprias a despertar a confiança e o amor a alguém é saber-se também amado por aquele a quem amamos. Há, porém, uma outra situação que nos leva a amar ainda com mais intensidade e afeto este alguém: é saber que ele nos amou antes de nós o conhecermos, que por amor a nós fez maravilhas e padeceu atrozmente para manifestar esse amor. É sobre esse amor que trata o Mons. João Clá, Fundador e Superior Geral dos Arautos do Evangelho no artigo que a seguir transcrevemos.

UM AMOR LEVADO AO EXTREMO LIMITE

Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP

É insondável o amor do Criador em relação a cada um de nós em particular. Por isso, às vezes, nos confunde a consideração de todos os benefícios que d’Ele recebemos.

Podendo simplesmente permanecer em sua plena e eterna felicidade, quis Deus criar o universo, com o objetivo de manifestar sua infinita bondade: “Ele criou por bondade. Não necessitava de coisa alguma daquilo que fez” ⁽¹⁾ — ensina Santo Agostinho.

A todos os homens e mulheres, Ele deu o ser, escolhendo-os um a um dentre as infinitas criaturas racionais que poderia criar. Ademais, nos redimiu do pecado, nos sustenta e favorece com seus dons, nas mais variadas circunstâncias. Mas, sobretudo, dá-nos a oportunidade de participar de sua vida divina já nesta Terra, como primícias da felicidade sem fim que nos está reservada no Céu, em inefável convívio com a Santíssima Trindade.

DEUS FAZ ALIANÇA COM OS HOMENS

Em contrapartida a tanta bondade, repete-se invariavelmente uma constante no comportamento dos homens: em determinado momento, eles se desviam dos caminhos traçados pelo Criador; a Providência, então, intervém a fim de evitar sua perdição, proporcionando-lhes os meios necessários para a salvação.

Assim, quando Adão e Eva cometeram o primeiro pecado, Deus os castigou com a expulsão do Paraíso, mas fez ao mesmo tempo uma aliança com o gênero humano, prometendo-lhe a Redenção e o restabelecimento do estado de graça perdido. ⁽²⁾

Contudo, não tardaram os homens a recair no pecado. Logo depois de nossos primeiros pais começarem a povoar o orbe com sua descendência, o Senhor constatou “o quanto havia crescido a maldade das pessoas na Terra e como todos os projetos dos seus corações tendiam para o mal” (Gn 6, 5). Arrependido, então, de ter criado o gênero humano, o Senhor o teria extirpado por completo da face da Terra se Noé não encontrasse graça diante de seus olhos (cf. Gn 6, 8).

Assim, conforme narra a Escritura (Gn 9, 8-15), terminado o terrível castigo do Dilúvio, Deus abençoou Noé e seus filhos, e estabeleceu com eles e com sua descendência uma aliança que “permanece em vigor durante todo o tempo das nações, até a proclamação universal do Evangelho”. ⁽³⁾

Essa aliança será mais tarde renovada com Abraão, em quem “serão abençoadas todas as famílias da Terra” (Gn 12, 3); através da Lei de Moisés, no Sinai (cf. Ex 19, 5-6); ou na promessa messiânica feita a Davi (cf. II Sm 8, 16), para citar apenas alguns dos principais episódios da história da Salvação.

CRISTO, AUGE DA HISTÓRIA DA SALVAÇÃO

Passam-se os séculos e a humanidade atinge um auge de decadência que marca simultaneamente o fim do Antigo Testamento e a “plenitude dos tempos” de que nos fala o Apóstolo (Gal4, 4). Jesus cumpre de maneira superabundante as promessas feitas aos patriarcas e profetas, assumindo a humana natureza sem deixar de ser Deus. Culmina, assim, com uma perfeição toda divina, a história da Salvação.

A Encarnação do Verbo é um mistério que ultrapassa por completo nossa capacidade intelectiva. Para tentar compreendê-lo em alguma medida, imaginemos um anjo nos propondo assumira natureza de uma minhoca, sem deixarmos a condição humana, com a missão de salvar da morte todas as minhocas do mundo. Qual seria nossa resposta?

Ora, a diferença entre um homem e uma minhoca é insondavelmente menor do que a existente entre Deus e as criaturas racionais. No primeiro caso, há uma desproporção enorme; no segundo, nem sequer se pode falar de desproporção, porque a distância é infinita.

Entretanto, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade assumiu a natureza humana para nos salvar, manifestando por nós um amor extraordinário, fora de toda medida.

DE UMA “LOUCURA” DE AMOR NASCE A SANTA IGREJA

No alto do Calvário, a bondade e a misericórdia do Verbo Encarnado pelos pecadores são levadas, por assim dizer, até à loucura (cf. I Cor 1, 18). E São Pedro nos lembra: “Cristo morreu, uma vez por todas, por causa dos pecados, o justo pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus. Sofreu a morte na sua existência humana, mas recebeu nova vida pelo Espírito.” (I Pd 3, 18)

Na Aliança estabelecida por Deus com a humanidade após o Dilúvio, Ele
prometeu não mais castigar a Terra por meio das águas (Gn 9, 11). Ora, bem se poderia dizer que a história da Salvação culmina num “dilúvio de Sangue”, de acordo com a expressiva fórmula de São Luís Maria Grignion de Montfort.
⁽⁴⁾

Porque — se não bastassem a flagelação, a coroação de espinhos e todos os sofrimentos ao caminho do Calvário — Ele permitiu que, na Cruz, uma lança Lhe perfurasse o peito sagrado.

Verteram-se nessa hora as últimas gotas de sangue e linfa que ainda restavam no seu Sacratíssimo Coração. Nasceu assim o Corpo Místico do qual Cristo é a Cabeça. “No Calvário, Ele completa sua imolação e faz nascer, em meio às mais espantosas torturas físicas e morais, a Igreja que Ele havia tão laboriosamente preparado e instituído. […] É, pois, a Igreja que, segundo a doutrina dos Padres, sai do Lado aberto do Salvador e, por assim dizer, é dada à luz por Ele”. ⁽⁵⁾

.

⁽¹⁾ SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Psalmos. Ps.134, c.10.

⁽²⁾ Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum, n.3.

⁽³⁾ Catecismo da Igreja Católica, 58.

⁽⁴⁾4 SÃO LUÍS GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge. 2. ed. Tours: Alfred Mame, 1931, p.58. Em português, no Brasil: Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, 43ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2014, p. 308

⁽⁵⁾ TANQUEREY, Adolphe. La vie de Jésus dans l’Église. Tournai: Desclée, 1933, p.59-61.

(Adaptado de “O inédito dos Evangelhos”, vol. III, Libreria Editrice Vaticana, 2013, p. 167-168. Foi também publicado na revista “Arautos do Evangelho”, nº 122, fevereiro de 2012, p. 10-12. Para acessar o exemplar do corrente mês clique aqui )

Ilustrações: Arautos do Evangelho, Gustavo Krajl, Pe. Timoty Ring, Wiki

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